Cartas do mundo líquido moderno
Essa obra do
sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman
recém-falecido é, no fundo, um compêndio de textos escritos no decorrer dos
anos 2008 a 2009 para uma revista italiana chamada La Repubblica delle Donne. Assim cada texto era considerado uma
carta que abordava temas culturais, políticos e, enfim, diários referentes ao
chamado mundo líquido, atual e contemporâneo.
As cartas
eram quinzenais e reverberaram através dos comentários e eventuais respostas do
autor. O primeiro ponto interessante está relacionado aos temas que normalmente
a revista aponta e para quem aponta. É frugal que as vitrines de lojas e bancas
estejam infestadas de revistas para o público feminino, trazendo logo na capa
figuras, imagens corpóreas, sensuais e luxuosas. Centram-se em dietas
milagrosas, exercícios físicos, indicações estéticas, de moda e estética, além
de recomendar truques de comportamento e conquista em diversas searas das
relações sociais.
A revista
que publicou as cartas de Bauman não
foge a essa regra e, igualmente, abrange todos esses temas retromencionados, inclusive
em suas capas posam modelos belíssimas e bem vestidas, mas também aborda temas
mais subjetivos, de maneira que não há uma receita pronta e nem um rótulo
sintetizador.
São mostradas
as tendências do mundo contemporâneo em função de uma estação do auto, e também
a ponderação de questões que questionam seguir ou não tais tendências.
Afinal, o
mundo contemporâneo é fluentemente líquido, mutável e transtornável e ninguém
engessa ou permanece no mesmo status.
Há uma multiplicação infinita de opções que se opera sobre a subjetividade, aonde
alguns aspectos vão se atomizando, mas outros são construídos sob outras
lógicas, ditadas particularmente pelos mercados.
Bauman com seu estilo polêmico e provocador
não deixou escapar em suas cartas a incitação a pensar sobre a grande enxurrada
de informações que inundam a vida. Mas, é preciso entender que os temas
abordados nas quarenta e quatro cartas não se dirigem apenas para as mulheres,
mas sim para o mundo.
Logo nas
primeiras cartas, Bauman analisa a indústria e os dispositivos de informação, o
que chama de autoestradas de informação, ou highway
da superinformação. O primeiro questionamento é sobre de qual forma estamos
sendo afetados pelos dispositivos que nos conectam cada vez mais imediatamente
e a todo e qualquer canto remoto do planeta e, tudo isso, através de pequenos
aparelhos que podemos carregar e usar quando e onde quisermos. E o que isso vem
a significar na vivência das relações humanas e das comunicações.
Há o chamado
pesadelo da informação insuficiente que fora substituído pelo pesadelo pior que
é o da enxurrada de informações que nos afoga e impede de nadar ou mergulhar.
Como afinal filtrar as notícias que realmente importam no meio de tanto lixo
inútil e irrelevante? Como captar as mensagens significativas entre o alarido
sem nexo? Na balbúrdia de opiniões e sugestões contraditórias, parece que nos
falta uma máquina para debulhar e finalmente separa o joio do trigo na montanha
de mentiras, ilusões, refugo e lixo.
Astutamente Bauman joga a isca e nos fisga,
levando-nos a refletir sobre as resposta que o próprio autor apresenta em suas
páginas seguintes. Recortando retalhos para depois costurá-los juntamente com
os leitores. Há uma dificuldade em discernir as informações, o que acarreta uma
progressiva solidão, mesmo quando se está em meio à multidão e que tudo o que
fazem ao se relacionarem através dos aparelhos de comunicação e nos sites de
relacionamentos é tentar fugir da solidão de estar só, ou melhor, de estar
consigo mesmo.
O filósofo aponta
que as pessoas estão desaprendendo a estarem sozinhas. Talvez as pessoas nunca tivessem
a oportunidade de aprender essa arte.
A massiva influência
dos meios de interação é comparada ao estado de prazer ou suspensão de
desprazer que uma substância psicoativa pode proporcionar. Zygmunt Bauman aponta os aparelhos de comunicação como drogas poderosas
que viciam as pessoas em enviar e receber recados mínimos em intervalos cada
vez mais mínimos. E, o rápido manuseio e domínio dos aparelhos têm se tornado uma
necessidade quase vital ou viral.
A
impossibilidade de acessar os aparelhos conectantes traz as pessoas uma angústia,
uma sensação de isolamento e solidão, ou em outros termos, o esvaziamento do
ego.
Analisou Bauman parcialmente dois principais
sites contemporâneos o Facebook e Twitter. E, discute também sobre a
desenfreada eminência do sexo virtual. Questiona as consequências dos dois
sites nas vidas de seus usuários, o que se revela complexo e infindável. Quando
se cogita que o Facebook[1]
revolucionou o mundo, cogita-se de certo, de uma parte de revolução.
Possivelmente cogitamos da parte que nos faz mais sentido ou a que nos salta
aos olhos, quando não estamos impetuosamente apaixonados.
Ironicamente
no texto "Como fazem os pássaros", comenta sobre o significado do
Twitter[2],
que traduzindo significa gorjear; Afinal o gorjeio serve basicamente para duas
coisas: manter contato e evitar que outros pássaros invadam seu espaço ou
território.
E, para o Twitter, o site atende basicamente a
demanda de se manifestar de forma rápida, resumida e fácil, pois seu recado só
pode conter no máximo cento e quarenta caracteres, e aprende de forma
pragmática a expressar coisas que não podem passar pelo pragmatismo, como num
mero filtro simplificado. É, pois apenas um néctar informativo.
Assim como, os
ícones de compartilhamento no Facebook
têm servido para que uma pessoa expresse algo do tipo: isso me representa, isso
compõe o que sou, mesmo que tais afirmativas sejam controversas. A necessidade
de pertencimento é muitas vezes sadia ilusoriamente quando apontamos o que
gostamos de algo ou pertencemos a certo grupo.
O que
realmente importa é saber contar aos demais, o que estamos fazendo. O que
importa é ser visto. E, nessa história entra sim, segundo Bauman, a substituição do contato direto e pessoal pelo contato
tela a tela, a perda de intimidade, da profundida e da durabilidade da relação
e dos laços humanos.
Bauman é
francamente partidário e enxerga de forma pessimista a nossa impossibilidade em
se conter e ser levado pela onda que a tudo carrega e arrasta.
O cogito ergo suum, fora substituído por “sou
visto, logo existo”, pois em se tratando de metas, quando cogitamos do fim do Twitter, há poucas linhas, enfim há o
grande objetivo de ser seguindo e ter muitas curtidas. E, assim, as pessoas vão
se comportando e, se mostrando de forma que tenha o maior número de seguidores
até que se tornem famosas. A fama se dá por ela mesma, ou seja, é a fama pela
fama e nada mais.
Para Bauman
os sites de relacionamento representam os substitutos da igualdade para os
destituídos, pois algumas pessoas chegam a ganhar uma fama virtual e vivem de
forma a majorá-la e sustentá-lo pelo maior tempo possível. E, ainda sobre o
sexo virtual o filósofo se vale das palavras da escritora Emily Debberley[3]
para defini-lo:
“(...) obter
sexo hoje é como encomendar uma pizza. Agora você pode conectar-se à internet e
encomendar uma genitália. Não há mais necessidade de flertar ou fazer corte,
não é preciso emprenhar todas as energias para obter a aprovação do parceiro,
nem mover mundos e fundos para merecer e conquistar o consentimento do outro
(...)”.
E, nesse
esvaziamento das relações humanas, a solidão e descartabilidade se solidificam...
Em detrimento da conveniência, da velocidade e da garantia contra as consequências,
muita coisa se perdeu.
Há uma
satisfação garantida, mas também há uma obsolescência programada para tudo,
pois as coisas e pessoas podem ser rapidamente substituídas! Discute o filósofo sobre os escondidos
significados nos atos, pois é como se o fato de alguém deixar de responder a um
e-mail ou mesmo atender a um telefonema significasse irredutivelmente,
negligência, indiferença condenável e ofensiva, afronta, dentre outras falhas
subjetivas graves que acenam com descaso, negligência ou simples má vontade.
Assim, da
mesma forma que há meios instantâneos de promover a conexão entre as pessoas,
há, os mesmos meios como promover a desconexão e o abandono. Tudo isso pautado
pela noção de conveniência, proteção e consumo. Os contratos humanos são enfim
reconfigurados e, com isso, também os valores.
Há todos os
dias, muros simbólicos a serem erguidos, e os afetos vão paulatinamente se
transformando, e os vínculos se tornam cada vez mais virtuais e menos
presenciais.
A dinâmica dos
relacionamentos não atende mais a efervescência dessas reconfigurações. Formula
algumas perguntas, o filósofo, voltadas para a maneira como se pode produzir
saúde em meio a um mundo fluído e mutável.
As
colocações já parecem remotas, até porque dependerá de quando o leitor as lerá,
e se irá ter tempo para refletir. Por outro lado, a virtualidade é boa e
profícua para disseminar ideias e promover os debates sobre a nossa forma de
ser e de estar no mundo.
Cogitar
sobre a capacidade de durar muito tempo[4]
não é mais um elogio aos objetos e nem aos vínculos humanos. Pois se presumem
que uns e outros sejam úteis apenas por um tempo fixo e depois se desintegrem,
e que sejam rasgados e jogados fora quando ultrapassam seu tempo de validade...
Enfim,
Bauman enfrentou o desafio de estudar a inconstante sociedade moderna,
utilizando uma linguagem clara e direta além de agradável. Enfim, é
indispensável ler Bauman para elaborar as grandes reflexões sobre a sociedade
contemporânea.
Referências:
BAUMAN,
Zygmunt. 44 Cartas do mundo líquido moderno. São Paulo: Jorge Zahar, 2011.
PAIOTTI,
Shirley. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Disponível em: http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_comunicacao_inovacao/article/download/1735/1275.
MARTINS,
Sara. O Facebook e a modernidade líquida. Disponível em:
http://www.concretesolutions.com.br/2014/08/25/o-facebook-e-a-modernidade-liquida/
[1]
A criação do Facebook em 2004 por
Mark Zuckerberg criou uma nova tendência de relacionamentos e comportamentos,
que coincidem com características da pós-modernidade no quesito tempo-espaço.
Afinal, nesta fase da sociedade pulula a tecnologia computacional, que gera
experiências diferentes das que foram experimentadas por gerações anteriores.
Isso se deve não somente pelo uso do computador, mas também pela interação que
a Internet permite aos usuários. O Facebook,
por ter surgido neste período, faz com que valores e sintomas desta geração
contemporânea sejam revelados por meio da rede.
Bauman fez alusão ao
dinamismo do tempo e à adaptação às novas formas. Segundo ele, a tecnologia e a
velocidade permitem a ampliação dos espaços e cada vez mais atividades
simultâneas, o que pode ser observado nas ações decorrentes do uso do Facebook.
O tempo pode ser definido
como o aqui e o agora. A velocidade da informação, além de encurtar distâncias,
cultiva no usuário hábitos de imediatismo, de pressa, de resultados presentes.
O dinamismo se manifesta tanto na percepção do tempo quanto na efemeridade dos
relacionamentos.
É um aparente jogo de
simultaneidade, em que o jogador encontra diversos meios para realizar
múltiplas tarefas ao mesmo tempo.
[2]
Segundo Kendi Sakamoto, consultor da DASA, as limitações dessas mídias não
impedem, de forma alguma, os usuários de se expressarem. "Cento e quarenta
caracteres podem derrubar ou elevar uma empresa", diz ele, referindo-se ao
microblog Twitter.
[3]
Emily Debberley é autora e jornalista britânica especializada em sexo e
relacionamentos. Fundou o site sobre o sexo feminino Cliterati em 2001 e passou a ser colunista da revista Scarlet,
vindo se tornar editora. Escreveu 24 livros vendidos internacionalmente desde 2004.
Estudou Psicologia Social na Universidade de Loughborough.
[4]
Com essa fluidez de abordagem de vários temas, o autor chegou a questões a
respeito da necessidade de buscar maneiras de cada um ser diferente de quem
realmente as pessoas são. Em “Agora é a vez dos cílios”, por sua vez, ele
afirmou que há “inúmeras tentações... procura-se seduzir mulheres ansiosas com
a aparência física (e, indireta- mente, com o status social e seu valor de mercado)”, sendo implacável ao
abordar, em “Remédios e doenças”, que as empresas farmacêuticas “aperfeiçoam
métodos de ampliar seus mercados, aos orientarem-se na tendência universal do
marketing”.
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