A concreta solidão do amor líquido
Em sua obra
"Amor Líquido", Zygmunt Bauman
trata da fragilidade dos laços humanos. Como foi um dos mais prestigiados
estudiosos da vivente modernidade tardia, sua obra se destacou por fazer
análises do cotidiano contemporâneo, e mais propriamente, dos vínculos sociais possíveis,
onde predomina a intensa velocidade e a angústia, considerando que nossas ações
ainda quando efetuadas mudam constantemente, antes mesmo de se consolidarem nas
práticas diárias.
Bauman abordou a ambiguidade inerente aos dias de hoje, a dor
e a delícia da possibilidade de ter acesso a tantas coisas e pessoas e da forma
de estar potencialmente pronto e aberto para novas relações e apropriações,
tornando assim imediatamente as primeiras relações, meros resíduos.
Nesse contexto há
dois aspectos principais, a saber: o primeiro que corresponde à vontade de liberdade,
inerente à constante busca pela individualização e identidade. O segundo
corresponde à velocidade, responsável pela inconsistência das relações e pela
alta produção de dejetos.
Afinal, tanto as
coisas como as relações, não são mais feitas para durar, há sempre novos
produtos, novas mercadorias, cada vez mais modernos, mais atraentes e estimulantes
para serem consumidos.
E, o filósofo apontou
as consequências provocadas pela busca frenética da liberdade em detrimento da
vida social estável.
Nessa obra em
particular, Bauman conferiu outro significado à liquidez quando referente às
relações humanas, de teor inverso ao usado nas relações bancárias. A liquidez
referente às importantes somas de dinheiro significa realmente a possibilidade
de realização de qualquer desejo que envolva o consumo[1] de segurança.
Ao passo que a liquidez do amor, em derradeira instância, representa a
possibilidade de um sentir desprovido de segurança. O livro informou no
prefácio que foi dedicado aos riscos e às ansiedades de se viver junto, e
separado, em nosso líquido mundo moderno.
A obra procurou
aprofundar-se na análise das relações humanas em geral e, observou também a
sociabilidade nas cidades modernas a partir da tecnologia. Procurou demonstrar
que as relações afetivas revelam-se essencialmente ambivalentes e, o desejo
pelo amor eterno[2]
e pela segurança sofre com as oscilações psico-químicas relativas ao estado de
enamoramento e, ainda, com o medo de perder algo enquanto se está preso e atado
a alguém.
Logo, existe o desejo
paradoxal de se ter o pássaro que voa ao mesmo tempo em que se tem outro
pássaro nas mãos. Bauman caracterizou
as relações humanas e contemporâneas a partir da fragilidade e a flexibilização
que apresentam.
O homem sem vínculos
que atua livre de compromisso com outrem, porém resta preso de forma
psicológica e espacial por medo do outro.
Afinal, o homem sem
vínculos é corroído pela insegurança. Da natureza liquefeita dos laços sociais
na modernidade que são, assim como no holocausto nazista, fenômenos decorrentes
da racionalidade da modernidade, embora sejam mais especificamente relacionados
à globalização[3].
Apoiando-se em Sigmund Freud que representou também o
elemento fundador da civilização, “o amar ao próximo como a si mesmo” corresponde
afirmar que a sobrevivência de um ser humano, torna-se igualmente a sobrevivência
da humanidade no humano. Enfim, Bauman
percebeu que o germe da moralidade é o amor-próprio, mas este, só é possível,
quando somos amados[4].
Estabeleceu-se então um processo relacional.
Porém, as relações
humanas estão em reconfiguração guiadas pelos princípios do consumismo,
caracterizado mais pelo uso e pelo descarte de bens do que propriamente por seu
acúmulo. Para a juventude contemporânea, por exemplo, o relevante é o maior
número de bocas ou coitos que se deram numa noite. Na sociedade contemporânea
onde a memória produzida está à venda, o outro se transforma em mais uma
mercadoria disponível para o consumo[5], o chamado consumo
emocional[6].
Tais mercadorias,
sejam filhos, amigos, amantes ou cônjuges, são passíveis de investimento, requerer
tempo e recursos e seu valor são, então determinados pelo custo desse mesmo
investimento.
As relações humanas
se tornam progressivamente mais flexíveis, gerando altos níveis de insegurança.
E, as relações afetivas e amorosas passam a ser vivenciadas de uma maneira mais
insegura, com dúvidas acrescidas à já irresistível e temerária atração de se
unir ao outro.
Nunca existira
tamanha liberdade de escolha de parceiros e arranjos afetivos, nem tamanha variedade
de moldes, modelos de relacionamentos, no entanto, em nenhum outro tempo, os
casais se sentiram tão ansiosos e prontos para revisão ou reversão, manejando o
rumo da relação numa dinâmica de anos-luz,
Se um relacionamento
não está bom, parte-se para outro. A verdade é que um relacionamento intenso
pode transformar a vida num inferno, contudo, nunca houve tanta procura para
relacionar-se com alguém.
Bauman pareceu ver homens e mulheres presos numa
trincheira sem saber como sair desta e, o que é ainda, mais cruel e dramático, sem
reconhecer com clareza se querem sair ou permanecer nela. Por isso, movimentam-se
em variadas direções, entram e saem de casos e relacionamentos amorosos com a
esperança mantida à custa de grande esforço, tentando acreditar sempre que o próximo
passo será o melhor.
Então, a conclusão
não poderia ser outra, a solidão existente atrás de uma porta fechada de um
cômodo com um celular[7] à mão pode parecer uma condição
menos arriscada e, portanto, mais confortavelmente segura, do que compartilhar
um território doméstico comum.
A redução dos
sentimentos às reações químicas tem o endosso da ciência que até propõe prazo
de eficácia e, garante tanto aos homens como as mulheres que estão
insatisfeitas, porém permaneçam persistentes
e continuam a procurar a chance de enfim, encontrar a parceria ideal[8], abrindo novos campos de
interação, tais como os pontos de encontros virtuais, nos quais a liquidez das
relações é evidente e o risco de comprometimento, de vínculo, torna-se
absolutamente controlável, bastando apenas desligar-se, cancelar a conta ou apagar
o login.
Radicaliza-se a
possibilidade de “amor inventado”[9], tão poeticamente previsto
na música de Cazuza, pois não havendo as certezas de amores verdadeiros ou mentirosos
que atendam à vaidade humana, fica mais fácil, convencer-se de que nunca
existiram e, rapidamente, já se está pronto e apto para outro amor, na
incessante e alucinante maratona em prol da satisfação do desejo.
Observa-se o
crescente interesse e prioridade pelos relacionamentos em redes[10]. Que podem ser tecidos e
desfeitos com maior facilidade e frequentemente sem que isso envolva nada mais
que um contato virtual[11], e perdemos, dessa forma,
a capacidade de cultivar e manter laços por longo tempo.
Enfim, a proximidade
no espaço contemporâneo não mais requer a contiguidade física e, nesta
determinada pela maior proximidade
concreta, embora seja tolo e irresponsável culpar a tecnologia eletrônica pelo
constante recuo da proximidade física e contínua, pessoal, direta e face to face, dotada de multifacetas e
multiuso. Os mecanismos tecnológicos contribuem para o afrouxamento de relações
humanas, transformando-as cada vez menos compromissadas mas não são as
principais causas determinantes.
Mas, isso não
significa que sejam menos responsáveis por este fenômeno. Os chamados
casamentos ideais e com maiores chances de durabilidade são aqueles em que os
parceiros não partilham de espaço comum. A falta de recursos financeiros
suficientes para custearem integralmente as despesas de uma vida adulta e
independente, passa ter peso e acarretam a majoração de número de casamentos
informais, ou uniões estáveis, sem o papel passado[12].
Ainda que a
legislação e o Direito de Família contemporâneo praticamente venham garantir todos
os direitos dos conviventes, ao menos, subjetivamente e psicologicamente, os
indivíduos envolvidos nessas uniões estáveis se sentem mais livres e leves do
que os casados oficialmente.
Percebe-se que a
relação liquefeita se desfaz ao fim do interesse que outrora as mantinha. Os
vínculos, os afetos e compromissos são considerados como pejorativos grilhões
que impedem os diferentes consumos e, o estabelecimento de novas relações
pautadas em interesses concretos.
No entanto, a
solidariedade, é fundamental para o bem-estar da comunidade, ainda não é consumível,
posto que seja decorrente de laços mais estreitos e fortes que envolvem deveres
e responsabilidades em relação ao outro.
Identificou Bauman a lógica de segregação espacial
e social, decorrente da sensibilidade quase alérgica aos estranhos e ao desconhecido
e, aliada ainda, a incapacidade de aceitar do humano na humanidade, em função
de ausência de compromisso com o próximo.
Enfim, o medo reina e
domina. A segregação é imposta e escolhida. Preferem-se os vínculos virtuais e evita-se
o contato indesejável, com aquele que demanda certo tipo de compromisso que
lembra o fundamento da civilização.
“Amar o outro como a
si próprio” significa um comprometimento, vínculo, querer, para ele aquilo que
se tem. Mas, a maioria dos indivíduos encarcerados em condomínios e feudos
urbanos, preocupados em proteger e salvaguardar seus bens, sejam materiais ou imateriais,
não se considera responsável por aquilo que os muros e todo o sistema de
segurança deixaram do lado exterior[13]. Assim, a miséria do
outro, as necessidades prementes do outro, a diferença extorsiva e constrangedora
revela-se desagradável e só nos causa estranhamento.
Não à toa a Europa
contemporânea vem vivenciando nova onda de xenofobia[14]. Em resumo, Zygmunt Bauman teve por objetivo, nesta
obra, alertar sobre a urgente necessidade de se buscar efetivamente a
humanidade comum para que seja possível outra vez unir projetos individuais e
ações coletivas, e, para que seja também possível ter a consciência da angústia
do eterno começar de novo.
O derradeiro consolo
apontou Bauman diante tamanha
realidade sombria produzida pela modernidade líquida é a simples constatação de
que a história ainda não findou e, que as escolhas ainda podem ser feitas.
Advertiu também que é preciso trabalhar para promover e tecer o diálogo e a
abertura ao outro, de forma se aproximar
a história do ideal da concreta e existente comunidade humana.
Referências
BAUMAN, Z. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços
humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e
Terra, 1999. v. 1.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de
Janeiro: Imago, 1996. (Obras psicológicas completas da edição Standard
Brasileira).
RESENDE, Adriana
Torquato. Amor Líquido: sobre a
fragilidade dos laços humanos. Disponível em http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tint/article/download/6414/4543 Acesso em
10.01.2017.
[1] O homo
consumens faz da compra a sua terapia e a busca pelas melhores ofertas a
cura para a sua solidão. Assim, a solidariedade, a amizade e as parcerias são
encaradas como atitudes anárquicas contra a tirania do mercado.
[2]
No Banquete de Platão, a profetisa Diotima de Mantinéia ressaltou para
Sócrates, com a sincera aprovação dele, que o amor não se dirige ao belo, como você
pensa; dirige-se à geração e ao nascimento no belo. Então amara significava
querer, gerar e procriar e, assim o amante busca a coisa bela na qual possa
gerar.
O amor é afim à
transcendência: não é senão outro nome e para o impulso criativo e como tal
carregado de riscos, pois o fim de uma criação nunca é certo.
Concluiu Bauman que a
essência do amor é ser refém do destino. É muito tentador concluir que o efeito
dessa aparente aquisição de habilidades tende a ser, tal como no caso de Don
Giovanni, o desaparecimento do amor, uma exercitada incapacidade para amar.
[3]
As forças da globalização dissolvem o mundo pessoal e os sujeitos procuram
agarrar-se a si mesmos. Tudo isso produz uma luta por sentido e identidade.
Surgem as tendências segregacionistas.
[4]
Explicou Bauman que a tendência do homem moderno é tentar obter lucro e levar
vantagem em todos os seus investimentos. Assim, concordando com Freud, Bauman
coloca que o mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo” não pode ser
considerado como algo razoável. O amor-próprio, condição para que se obedeça ao
preceito, depende do amor que recebemos dos outros. Segundo Zygmunt, o que
amamos é a possibilidade de sermos dignos de amor.
[5]
Nossa cultura consumista prefere o produto pronto para pronto e imediato uso,
ao prazer intenso, busca cada vez mais a passageira e instantânea satisfação. O
amor, ao revés, exige esforços prolongados e sinceros. O amor e desejo são
irmãos gêmeos, mas não são idênticos. Pois enquanto o desejo consome, devora e
liquida; o amor, por sua vez, preserva, aprisiona e possui. Observou Bauman que
os consumidores contemporâneos não compram somente para satisfazer uma
necessidade ou desejo, mas geralmente compram por impulso e, no caso de
relacionamentos sexuais, seguir os impulsos significa estar sempre aberto e
livre a novas experiências com outras pessoas.
[6]
O termo "consumo emocional" foi usado pelo filósofo francês Gilles
Lipovetsky para refletir sobre o consumo como fator de construção de identidade
do ser humano. O consumo não é só por status mas também para ajudar na criação
de uma imagem. A referida identidade colabora na socialização pelo consumo,
isto é, buscamos nos relacionar com pessoas que tenham o mesmo padrão de
consumo que o nosso. Um perigoso efeito colateral do consumo emocional é o
chamado hiperconsumo, também citado pelo filósofo francês. E que na prática
ocorre quando aquele produto que seduziu perde efeito sobre você. Exerce um
poder de depreciação e o que antes deu prazer começa a provocar dor. Essa
prática pode se tornar um círculo viciosa o que a torna muito nociva.
[7] O celular é um acessório indispensável e
caracterizador na modernidade líquida. Feito para pessoas em movimento, com ele
é possível estar sempre conectado: “estando com seu celular, você nunca está fora
ou longe; encontra-se sempre dentro, mas jamais trancado em um lugar”. Os
celulares permitem proximidade sem contiguidade física.
[8]
O homo sexualis é tratado na obra e
Bauman afirmou que a cultura nasceu exatamente do encontro dos sexos e, citando
o sexólogo Volkmar Sigusch, aponta que ars
erotica perdeu espaço para a scientia
sexualis. Significando que o sexo deve ser algo mais racional e desprovido
de ilusão. Em verdade, deu-se um divórcio entre sexo e reprodução, sendo que
esta última, tornou-se responsabilidade da ciência médica. De sorte que os
filhos podem ser planejados e produzidos ou fabricados conforme as
necessidades, impulsos e desejos de seus pais (que clientes da biogenética,
ainda podem escolher quais melhores características genéticas pretendem legar a
prole).
[9]
Bauman cogitou sobre "Afinidade e Parentesco". O parentesco seria o
laço irredutível e inquebrável. Mas, é aquilo que não nos dá escolha. Ao passo
que a afinidade é, ao contrário do parentesco. É voluntária e escolhida. Mas, o
objetivo da afinidade é ser como o parentesco. Entretanto, ao se viver numa
sociedade de plena descartabilidade, até mesmo as afinidades estão cada vez
mais raras.
[10]
Entende-se a palavra "rede" por momentos nos quais, se está em
contato, intercalados por períodos de movimentação a esmo. Na rede, as conexões
são estabelecidas e cortadas por escolha. A hipótese de um relacionamento
indesejável, mas impossível de romper é o que torna relacionar-se a coisa mais
traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma conexão indesejável é um paradoxo. As
conexões podem ser rompidas e, o são, muito antes que se comece a detestá-las.
[11]
O namoro pela internet é outro
aspecto abordado por Bauman. As vantagens desse tipo de relacionamento são a
segurança e a falta de compromisso. O contato pode ser deletado a qualquer
instante sem maiores consequências. Além disso, a “oferta” é grande e é
possível escolher o “produto” que seja mais agradável. Bauman também cogitou da
“economia moral” que, segundo Albert Henry Halsey trata-se do compartilhamento
de bens e serviços, da ajuda mútua e da cooperação entre familiares, vizinhos e
amigos. Ela funciona como uma válvula de escape para as pressões do mercado não
se tornarem absolutas e incontroláveis.
[12] Existem parceiros que preferem simplesmente
viver juntos, sem os compromissos oficiais do casamento. Há também os casais semisseparados
(CSS), que vivem um casamento em tempo parcial: cada um tem sua casa, sua conta
bancária e seu círculo de amigos. Eles só ficam juntos quando sentem vontade.
Bauman colocou que essas são algumas tentativas de se satisfazer, ao mesmo
tempo, o impulso de liberdade e a ânsia por pertencimento.
[13]
Bauman denunciou a produção de lixo humano pela modernidade. A produção e
reprodução da ordem social e o progresso econômico são as principais causas da
seleção, do descarte e da exclusão das pessoas que não se adaptam à nova ordem
social. Existe um acúmulo de lixo humano
no planeta e faltam aterros sanitários para os excedentes humanos.
[14]
Ao tratar da xenofobia e da crescente preocupação com a segurança na sociedade
humana, Bauman tratou do problema da imigração nos EUA, ressaltando que o
desprezo aos imigrantes, agora partilhado até por Donald Trump, presidente
eleito dos EUA, é um ataque ao cerne da identidade norte-americana, que tem na
imigração um de seus pilares.
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